Por Dr. Miguel Bispo, Médico Gastroenterologista do Centro Clínico Champalimaud e elemento da Direção da Sociedade Portuguesa de Endoscopia Digestiva (SPED).
O cancro do pâncreas constitui um desafio clínico e um problema de saúde pública a nível mundial. O termo “cancro do pâncreas” corresponde ao adenocarcinoma ductal do pâncreas, um tumor com origem nos ductos (canais) pancreáticos. O seu crescente mediatismo deve-se ao aumento significativo da sua incidência e dificuldade de tratamento, resultando em elevada mortalidade. Nos últimos 25 anos, observou-se em Portugal um aumento progressivo da sua incidência, surgindo atualmente cerca de 1800 novos casos por ano.
Fatores de Risco e Prognóstico
A elevada mortalidade associada ao cancro do pâncreas pode ser atribuída a três principais fatores. Em primeiro lugar, a natureza silenciosa da doença, com sintomas que só se manifestam em estádios avançados. Quando os surgem os primeiros sintomas, o tumor já se encontra frequentemente disseminado. Em segundo lugar, o comportamento biológico agressivo do tumor, com tendência para se disseminar precocemente. Mesmo as lesões pequenas podem apresentar micrometástases, muitas vezes difíceis de identificar nos exames de imagens e que comprometem a ressecção cirúrgica curativa. Por fim, o cancro do pâncreas é relativamente resistente aos tratamentos médicos. Verifica-se neste tipo de tumor um fenómeno designado desmoplasia, que resulta numa manga fibrosa densa a rodear as células tumorais, limitando a penetração e a eficácia dos agentes de quimioterapia.
Fatores de Risco Modificáveis e Não Modificáveis
Os fatores de risco para o desenvolvimento do cancro do pâncreas podem ser classificados como não modificáveis e modificáveis. Entre os não modificáveis, encontram-se a idade – com incidência crescente a partir dos 60 anos – e a história familiar. O risco de cancro do pâncreas é maior nos familiares de 1º grau (pais, irmãos e filhos) de um indivíduo com a doença, sendo o risco acrescido na presença de vários familiares afetados. Existem ainda determinados síndromes genéticos hereditários que conferem maior risco de vários tipos de tumores, incluindo de cancro do pâncreas.
Por outro lado, os fatores de risco modificáveis incluem o tabagismo, a diabetes mellitus tipo 2, a obesidade e a pancreatite crónica, esta última frequentemente associada ao consumo de álcool e tabaco. A adopção de um estilo de vida saudável, com a cessação do tabaco, a prática regular de exercício físico e uma dieta equilibrada, desempenha um papel significativo na redução do risco.
Manifestações mais frequentes
O cancro do pâncreas é habitualmente silencioso até uma fase avançada da doença e os sintomas variam com a localização do tumor no próprio órgão. Os sintomas são relativamente inespecíficos, como dor abdominal, perda de apetite, emagrecimento e cansaço. Quando o tumor envolve a cabeça do pâncreas e provoca obstrução da drenagem biliar (por invasão da via biliar, que conduz a bílis do fígado para o intestino) pode surgir icterícia - coloração amarelada dos olhos e da pele.
Diagnóstico Precoce e Desafios no Rastreio
O diagnóstico precoce é crucial para melhorar o prognóstico, mas, infelizmente, continua a ser um dos maiores desafios na abordagem desta doença.
A tomografia computadorizada (TAC) com contraste endovenoso e a ressonância magnética (RM) são os exames de imagem de primeira linha para avaliação do pâncreas, sendo muito relevantes no diagnóstico e estadiamento.
A ecoendoscopia digestiva, também conhecida por ultrassonografia transendoscópica, em que é utilizada uma sonda de ecografia de alta resolução acoplada a um endoscópio, realizada sob sedação, é o exame mais sensível para diagnosticar tumores em fase inicial. Permite visualizar com elevada acuidade todo o pâncreas através do estômago e duodeno e realizar biopsias do tecido tumoral com segurança e conforto para o doente.
Ao contrário de outros tumores digestivos, como o cancro colorretal, ainda não existem métodos de rastreio eficazes e acessíveis a toda a população. O rastreio de determinados grupos com elevado risco de cancro do pâncreas (pela história familiar ou pela identificação de determinados síndromes hereditários) já é realizado em vários centros europeus, mas apenas no âmbito de programas de investigação. Existem critérios de inclusão específicos para estes programas de rastreio, que dependem da estimativa do risco de cancro do pâncreas. A estratégia de rastreio utilizada nos grupos de risco inclui a ecoendoscopia digestiva e a ressonância magnética.
Tratamento do Cancro do Pâncreas
O tratamento do cancro do pâncreas é selecionado com base em diversos fatores, incluindo o estado geral do doente (performance status), a presença concomitante de outras doenças (comorbilidades) e o estádio do tumor (fase da doença).
O tratamento cirúrgico continua a ser o único tratamento potencialmente curativo, mas nem todos os doentes são candidatos a cirurgia direta. Na verdade, menos de ¼ dos doentes são candidatos à cirurgia no momento do diagnóstico. A maioria dos doentes terá indicação para um esquema de quimioterapia e, cada vez mais, individualizamos essa seleção e tentamos personalizar o tratamento. Para isso, a biopsia, com a determinação das características do tumor, é fundamental no processo de decisão terapêutica. Alguns doentes com doença localmente avançada, que não são candidatos cirúrgicos ad initium (pelo envolvimento de estruturas vizinhas a comprometer a ressecabilidade cirúrgica), poderão apresentar redução da massa tumoral sob quimioterapia, tornando o tumor potencialmente ressecável.
Caminhamos hoje na era da Medicina personalizada, em que são consideradas as características individuais e o perfil molecular das células cancerígenas no sentido de optimizar a eficácia do tratamento. Apesar da dificuldade em implementar esta estratégia no cancro do pâncreas, que é um tumor muito complexo e heterogéneo do ponto de vista molecular, a investigação básica e as novas tecnologias têm permitido identificar novos alvos terapêuticos, com claro benefício em determinados grupos de doentes.
Perspetiva para o futuro
Na patologia pancreática, em que abordamos um órgão que historicamente se manteve desconhecido durante vários séculos, a investigação científica assume um papel central. Apesar do panorama ainda preocupante, devemos deixar uma mensagem de esperança. Nos últimos anos, a taxa de sobrevivência global aos cinco anos tem vindo a aumentar de forma lenta mas consistente, passando de 5% para 13%. Apesar do prognóstico ainda reservado, deverão ser destacados importantes progressos da investigação, tanto no âmbito do diagnóstico como do tratamento. Novos dados de investigação têm permitido identificar marcadores moleculares com valor preditivo da resposta ao tratamento (por exemplo na identificação dos doentes que mais beneficiam de cirurgia) e poderão dirigir a seleção de fármacos anti-tumorais de acordo com a sensibilidade das células cancerígenas. No tratamento do cancro de pâncreas, devemos equacionar sempre a inclusão do doente num ensaio clínico. Recentemente, a proporção de doentes candidatos a uma cirurgia potencialmente curativa tem aumentado e estes serão os doentes que apresentam o prognóstico mais favorável. No âmbito do rastreio e do diagnóstico precoce será importante validar biomarcadores, pesquisados por análise sanguínea, com sensibilidade e especificidade elevadas, permitindo um diagnóstico verdadeiramente precoce. Este é um campo de estudo complexo, que esperemos que possa vir a mudar radicalmente a forma como diagnosticamos o cancro do pâncreas.
Existem recomendações internacionais sobre cancro do pâncreas, especificamente dirigidas ao doente e seus familiares. Para mais informações sobre recomendações internacionais sobre cancro do pâncreas, consulte: NCCN guidelines for patients: pancreatic cancer.